Insônia Crônica: quando dormir mal deixa de ser ocasional e vira doença
Sintomas noturnos (o que acontece à noite) Dificuldade para iniciar o sono (latência prolongada) Acordar várias vezes durante a noite Acordar muito cedo e não conseguir voltar a dormir Sensação de sono leve, não reparador Mente acelerada ao deitar (ruminações, preocupações) Ansiedade antecipatória: medo de “não conseguir dormir” Sintomas diurnos (o impacto no dia seguinte) Cansaço físico e mental persistente Irritabilidade e impaciência Dificuldade de concentração, memória e atenção Queda de produtividade e rendimento Sonolência diurna ou sensação de “corpo pesado” Dor de cabeça, tensão muscular Baixa tolerância ao estresse
Dr. Marcos Figarella
12/26/20258 min read


Insônia Crônica: Quando o Sono Se Torna Um Desafio Diário
Você já passou a noite inteira olhando para o teto, contando carneirinhos, mudando de posição mil vezes, enquanto o relógio avança impiedosamente? E quando finalmente consegue pegar no sono, o despertador toca? Agora imagine isso acontecendo não uma ou duas noites, mas semana após semana, mês após mês. Bem-vindo ao universo da insônia crônica.
O Que É Insônia Crônica, Exatamente?
Insônia não é apenas "dormir mal". É um transtorno do sono caracterizado por dificuldade persistente em iniciar o sono, mantê-lo durante a noite, ou acordar muito cedo sem conseguir voltar a dormir - mesmo quando há oportunidade e condições adequadas para dormir.
A diferença entre insônia aguda (aquela que todo mundo tem vez ou outra) e insônia crônica está na duração e frequência. Para ser considerada crônica, a insônia precisa ocorrer pelo menos três vezes por semana e persistir por no mínimo três meses. E o mais importante: ela causa prejuízo significativo no funcionamento diurno - cansaço, irritabilidade, dificuldade de concentração, problemas no trabalho ou relacionamentos.
Não estamos falando de uma noite mal dormida antes de uma prova importante. Estamos falando de uma batalha noturna constante que afeta profundamente a qualidade de vida.
O Cérebro Que Não Desliga
Vamos falar do que acontece por baixo dos panos. O sono é regulado por dois sistemas principais: o ritmo circadiano (nosso relógio biológico interno, controlado principalmente pela luz) e o processo homeostático (a pressão do sono que aumenta quanto mais tempo ficamos acordados).
Na insônia crônica, há uma hiperativação do sistema de alerta do cérebro. É como se houvesse um estado de hipervigilância constante - o cérebro simplesmente não consegue fazer a transição do estado de vigília para o estado de sono. Estudos de neuroimagem mostram maior atividade metabólica cerebral durante o sono em pessoas com insônia, especialmente em áreas relacionadas ao processamento emocional e à atenção.
O eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HPA), nosso sistema de resposta ao estresse, também está desregulado. Há níveis elevados de cortisol (o hormônio do estresse) à noite, justamente quando deveriam estar baixos. A temperatura corporal central permanece mais elevada, dificultando o início do sono.
E tem mais: a produção de melatonina (o hormônio que sinaliza ao corpo que é hora de dormir) pode estar alterada, especialmente em pessoas expostas a luz artificial à noite ou com ritmos circadianos desregulados.
Os Tipos de Insônia: Não É Tudo Igual
Muita gente não sabe, mas existem diferentes padrões de insônia:
Insônia de início é aquela em que você simplesmente não consegue adormecer. Fica ali, rolando na cama, a mente acelerada, enquanto 30 minutos se transformam em uma hora, duas horas... Você está cansado, quer dormir, mas o sono não vem.
Insônia de manutenção é quando você até consegue adormecer, mas acorda várias vezes durante a noite e tem dificuldade para voltar a dormir. Ou acorda no meio da madrugada e fica horas acordado, vendo as horas passarem.
Despertar precoce é acordar muito cedo (tipo 4h da manhã) e não conseguir mais dormir, mesmo estando cansado. Esse padrão é particularmente comum em pessoas com depressão.
Muitas pessoas têm uma combinação desses padrões, e eles podem variar ao longo do tempo.
Por Que Isso Acontece Comigo?
Essa é a pergunta que mais ouço. E a resposta geralmente envolve múltiplos fatores que se entrelaçam.
Fatores predisponentes são aqueles que aumentam sua vulnerabilidade: genética (sim, insônia tem componente hereditário), sexo feminino (mulheres têm o dobro de risco), idade avançada, temperamento ansioso, tendência à ruminação mental.
Fatores precipitantes são os gatilhos iniciais: estresse agudo (perda de emprego, luto, separação), doença física, mudança de ambiente, jet lag, trabalho em turnos. Muitas vezes a insônia começa assim - como uma reação a uma situação específica.
Fatores perpetuadores são os que mantêm a insônia mesmo depois que o gatilho inicial desapareceu. E aqui está o pulo do gato: são geralmente comportamentos que desenvolvemos tentando "compensar" a falta de sono, mas que na verdade pioram tudo.
Coisas como: ir para a cama muito cedo "para tentar dormir mais", cochilar durante o dia, ficar na cama acordado por horas (criando uma associação entre cama e insônia), usar álcool para "relaxar", tomar café demais durante o dia para compensar o cansaço, olhar o celular na cama...
A Conexão Com Outras Condições
Insônia raramente vem sozinha. Ela tem uma relação bidirecional complexa com várias condições médicas e psiquiátricas.
Transtornos mentais como depressão, ansiedade e TAG estão presentes em cerca de 40-50% das pessoas com insônia crônica. E a via é de mão dupla: a insônia aumenta o risco de desenvolver depressão, e a depressão piora a insônia.
Dor crônica e insônia formam um ciclo vicioso: a dor dificulta o sono, e a privação de sono aumenta a sensibilidade à dor (diminui o limiar doloroso).
Condições médicas como refluxo gastroesofágico, apneia do sono, síndrome das pernas inquietas, problemas de tireoide, doenças cardiovasculares - todas podem causar ou piorar a insônia.
Medicamentos também podem interferir: alguns antidepressivos, corticoides, broncodilatadores, descongestionantes, medicamentos para pressão alta... A lista é extensa.
As Consequências Vão Além do Cansaço
Aqui está algo que precisa ser dito claramente: insônia crônica não é apenas "estar cansado". As consequências são amplas e sérias.
Cognitivamente, há prejuízo na atenção, concentração, memória (especialmente memória de trabalho), tomada de decisões, criatividade e velocidade de processamento. É como tentar funcionar com o cérebro em modo econômico de bateria.
Emocionalmente, aumenta irritabilidade, reatividade emocional, risco de desenvolver depressão e ansiedade. A privação de sono crônica afeta a regulação emocional - pequenos problemas parecem enormes.
Fisicamente, insônia crônica está associada a: aumento do risco cardiovascular (hipertensão, infarto), alterações metabólicas (resistência à insulina, ganho de peso), comprometimento do sistema imunológico (mais infecções), aumento de processos inflamatórios, maior risco de acidentes (de trânsito, de trabalho).
Socialmente, há prejuízo no desempenho profissional, nos relacionamentos, na qualidade de vida geral. O absenteísmo e presenteísmo (estar presente mas não produtivo) são comuns.
O Que NÃO Funciona (Mas Todo Mundo Tenta)
Antes de falar do que funciona, vamos falar do que não funciona - porque muita gente perde tempo com estratégias que só pioram a situação.
Álcool pode até fazer você adormecer mais rápido, mas fragmenta o sono, reduz o sono REM (importante para memória e processamento emocional) e causa despertares na segunda metade da noite. Sem contar o risco de dependência.
Ficar na cama acordado tentando forçar o sono só cria uma associação negativa entre a cama e a insônia. Seu cérebro começa a ver a cama como lugar de frustração, não de descanso.
Compensar no fim de semana dormindo até tarde não resolve o problema e pode desregular ainda mais seu ritmo circadiano.
Usar telas antes de dormir (celular, tablet, TV) expõe você à luz azul que suprime melatonina e mantém o cérebro alerta.
Preocupar-se com o sono cria um ciclo de ansiedade antecipatória que... piora o sono. É um paradoxo cruel.
O Tratamento: O Que Realmente Funciona
Aqui vem a boa notícia: insônia crônica tem tratamento eficaz. E o tratamento de primeira linha não é medicação - é terapia.
A Terapia Cognitivo-Comportamental para Insônia (TCC-I) é considerada o padrão-ouro de tratamento, com eficácia comprovada em múltiplos estudos. E o melhor: os efeitos são duradouros, ao contrário da medicação.
A TCC-I envolve vários componentes:
Controle de estímulos: recondicionar o cérebro a associar a cama com sono. Regras simples mas poderosas: use a cama apenas para dormir (e sexo), vá para a cama só quando estiver com sono, se não dormir em 20 minutos, levante e faça algo relaxante, mantenha horário regular de acordar.
Restrição de sono: parece contraintuitivo, mas funciona. Você limita o tempo na cama ao tempo que realmente dorme, criando uma leve privação de sono que aumenta a pressão homeostática. Gradualmente, o tempo na cama é aumentado conforme a eficiência do sono melhora.
Higiene do sono: criar condições ideais - quarto escuro, silencioso, temperatura fresca (18-20°C), colchão confortável, evitar cafeína após meio-dia, exercícios regulares (mas não perto da hora de dormir), rotina relaxante antes de dormir.
Reestruturação cognitiva: trabalhar pensamentos disfuncionais sobre o sono ("se eu não dormir 8 horas vou ter um dia terrível", "nunca vou conseguir dormir", "minha insônia é incurável"). Esses pensamentos geram ansiedade que... piora o sono.
Técnicas de relaxamento: respiração diafragmática, relaxamento muscular progressivo, meditação mindfulness, imagens guiadas. Não para "forçar" o sono, mas para reduzir a hiperativação.
Medicamentos têm seu lugar, especialmente no curto prazo ou em casos específicos, mas não são solução de longo prazo:
Hipnóticos (benzodiazepínicos, "Z-drugs" como zolpidem): eficazes no curto prazo, mas risco de tolerância, dependência e efeitos colaterais
Antidepressivos sedativos (trazodona, mirtazapina): úteis quando há depressão comórbida
Melatonina: pode ajudar na regulação do ritmo circadiano, especialmente em idosos ou em casos de jet lag
Antagonistas de orexina (suvorexanto): mais novos, agem no sistema de vigília
A abordagem ideal geralmente combina TCC-I com medicação temporária quando necessário, com desmame gradual da medicação conforme as técnicas comportamentais fazem efeito.
Mudanças no Estilo de Vida Que Fazem Diferença
Além do tratamento formal, algumas mudanças práticas podem ajudar significativamente:
Exposição à luz é crucial. Luz solar pela manhã ajuda a regular o ritmo circadiano. Luz fraca à noite (especialmente evitar luz azul) facilita a produção de melatonina.
Exercício físico regular melhora a qualidade do sono, mas timing importa - exercícios intensos muito perto da hora de dormir podem ter efeito estimulante.
Alimentação também conta. Evitar refeições pesadas à noite, reduzir cafeína (que tem meia-vida de 5-6 horas), limitar líquidos antes de dormir para evitar despertares para ir ao banheiro.
Manejo do estresse durante o dia reduz a hiperativação noturna. Técnicas como mindfulness, journaling, terapia para questões subjacentes.
Rotina consistente - ir para a cama e acordar em horários similares todos os dias (sim, inclusive fins de semana) ajuda a estabilizar o ritmo circadiano.
Convivendo Com Insônia: É Possível Ter Qualidade de Vida
Vou ser honesto: para algumas pessoas, a insônia pode ser uma condição recorrente que requer manejo contínuo. Mas isso não significa viver em sofrimento constante.
Com as ferramentas certas - especialmente TCC-I - a maioria das pessoas consegue melhorar significativamente a qualidade do sono e, consequentemente, a qualidade de vida. Algumas ficam completamente livres da insônia, outras aprendem a manejar episódios ocasionais sem que isso se torne crônico novamente.
O importante é mudar a relação com o sono. Parar de vê-lo como uma batalha a ser vencida e começar a criar condições para que ele aconteça naturalmente. Paradoxalmente, quanto menos você "tenta" dormir, mais fácil fica.
Uma Palavra Final
Se você está lendo isso às 3h da manhã, frustrado por não conseguir dormir, quero que saiba: você não está sozinho. Cerca de 10-15% da população adulta sofre de insônia crônica. E há ajuda disponível.
Insônia não é falha de caráter, não é frescura, não é "só relaxar". É uma condição médica real que merece atenção e tratamento adequados.
O primeiro passo é procurar ajuda profissional - um médico especialista em medicina do sono ou um psiquiatra pode fazer uma avaliação adequada, descartar outras condições (como apneia do sono) e indicar o tratamento mais apropriado para o seu caso.
Você merece dormir bem. Você merece acordar descansado. E isso é possível.
Boa noite - e que seja uma noite de sono reparador.
