Anorexia Nervosa - Anorexia nervosa não é sobre comida. É sobre dor emocional, controle, medo e sofrimento psíquico profundo. E tem tratamento.
A anorexia nervosa é um transtorno alimentar grave, marcado por restrição intensa de alimentos, medo extremo de ganhar peso e distorção da imagem corporal. Não é vaidade, escolha ou “frescura” — é uma doença psiquiátrica séria, com alto risco clínico se não tratada.
Dr. Marcos Figarella
12/26/20259 min read


Anorexia Nervosa: Muito Além da Aparência
Sabe aquela ideia de que anorexia é "só querer ser magro" ou "frescura de adolescente"? Pois é, precisa ser jogada no lixo imediatamente. Anorexia nervosa é um transtorno mental grave, complexo, com raízes neurobiológicas profundas - e tem a maior taxa de mortalidade entre todos os transtornos psiquiátricos. Isso mesmo: é potencialmente fatal.
Vamos conversar sobre isso de forma honesta, sem romantizar, sem minimizar, mas também sem catastrofizar. Vamos entender o que realmente acontece quando alguém desenvolve anorexia.
O Que É Anorexia Nervosa, De Verdade?
Anorexia nervosa é um transtorno alimentar caracterizado por três elementos centrais que se entrelaçam de forma devastadora:
Primeiro: restrição persistente da ingestão calórica levando a um peso corporal significativamente baixo (considerando idade, sexo, trajetória de desenvolvimento e saúde física). Não estamos falando de "estar magro" - estamos falando de um peso que compromete o funcionamento do organismo.
Segundo: medo intenso, irracional e persistente de ganhar peso ou engordar, mesmo estando abaixo do peso. Esse medo não diminui conforme a pessoa emagrece - pelo contrário, muitas vezes aumenta. É um medo que domina cada pensamento, cada decisão.
Terceiro: distúrbio na percepção do próprio peso ou forma corporal. A pessoa olha no espelho e literalmente vê algo diferente da realidade. Ela pode estar com IMC de 15 (gravemente abaixo do peso) e se ver "gorda". Essa distorção não é fingimento - é uma alteração real na percepção, com base neurobiológica.
E aqui está algo crucial: a autoestima da pessoa fica completamente refém do peso e da forma corporal. O valor próprio é medido em quilos, centímetros, calorias. É como se toda a identidade fosse reduzida a números numa balança.
Existem Subtipos - E Eles Importam
A anorexia não é uma coisa só. Existem dois subtipos principais:
Tipo restritivo: a pessoa perde peso principalmente através de dieta, jejum e exercício excessivo. Não há episódios regulares de compulsão alimentar ou comportamentos purgativos. É o controle absoluto sobre a ingestão.
Tipo compulsão alimentar/purgativo: além da restrição, há episódios de compulsão alimentar (comer grande quantidade em curto período com sensação de perda de controle) seguidos de comportamentos compensatórios como vômito autoinduzido, uso de laxantes, diuréticos ou enemas. É uma relação ainda mais caótica com a comida.
Esses subtipos podem se alternar ao longo do tempo - uma pessoa pode começar com o tipo restritivo e depois desenvolver comportamentos purgativos, ou vice-versa.
O Que Acontece no Cérebro
Aqui está onde a coisa fica realmente interessante - e complexa. Anorexia não é "falta de força de vontade" ou "escolha". Há alterações neurobiológicas reais e mensuráveis.
Sistemas de neurotransmissores estão profundamente alterados. A serotonina, que regula humor, ansiedade e comportamento alimentar, funciona de forma anormal. Curiosamente, há evidências de que pessoas com anorexia têm hiperatividade serotoninérgica em certas áreas cerebrais, e a restrição alimentar paradoxalmente reduz essa hiperatividade, gerando uma sensação temporária de alívio - o que reforça o comportamento restritivo.
A dopamina, ligada ao sistema de recompensa, também está alterada. Estudos mostram que pessoas com anorexia têm resposta dopaminérgica reduzida a estímulos alimentares - ou seja, comida não gera prazer como deveria. Ao mesmo tempo, há evidências de que o comportamento restritivo em si pode ativar circuitos de recompensa, criando um reforço perverso.
Neuroimagem revela coisas fascinantes e preocupantes. Há alterações estruturais em áreas como:
Ínsula: envolvida na percepção corporal e interocepção (percepção de sinais internos do corpo) - sua disfunção contribui para a distorção da imagem corporal
Córtex pré-frontal: hiperativo, relacionado ao controle excessivo e rigidez cognitiva
Amígdala: alterações na resposta emocional, especialmente relacionada a comida e corpo
Circuitos de recompensa: resposta anormal a estímulos alimentares
A desnutrição em si causa atrofia cerebral - redução de massa cinzenta e branca. A boa notícia é que com recuperação nutricional, há reversão significativa, embora nem sempre completa.
Por Que Algumas Pessoas Desenvolvem Anorexia?
Essa é a pergunta que famílias fazem constantemente: "Por quê? O que fizemos de errado?" E a resposta honesta é: não há uma causa única. É uma tempestade perfeita de múltiplos fatores.
Genética pesa bastante. Estudos com gêmeos mostram herdabilidade de 50-80% - um dos números mais altos entre transtornos psiquiátricos. Se você tem um parente de primeiro grau com anorexia, seu risco aumenta cerca de 10 vezes. Há genes específicos sendo investigados, relacionados a metabolismo, regulação de apetite, traços de personalidade.
Fatores neurobiológicos incluem alterações pré-existentes nos sistemas de serotonina e dopamina, diferenças na estrutura e função cerebral que podem preceder o transtorno.
Traços de personalidade são importantes. Perfeccionismo, rigidez cognitiva, necessidade de controle, intolerância à incerteza, evitação de danos, baixa autoestima - esses traços são comuns em pessoas que desenvolvem anorexia. Não causam o transtorno sozinhos, mas aumentam a vulnerabilidade.
Fatores psicológicos como traumas, abuso (sexual, físico, emocional), bullying relacionado ao peso ou aparência, dificuldades em lidar com emoções, necessidade de controle em situações de caos ou impotência.
Fatores socioculturais não podem ser ignorados. Vivemos numa cultura que glorifica a magreza, que associa valor pessoal a aparência, que bombardeia especialmente mulheres jovens com imagens irreais de "corpos perfeitos". Redes sociais, com seus filtros e comparações constantes, intensificam isso. Mas atenção: esses fatores sozinhos não causam anorexia - se causassem, todo mundo exposto a essa cultura desenvolveria o transtorno. Eles interagem com vulnerabilidades biológicas e psicológicas.
Dietas restritivas podem ser o gatilho em pessoas vulneráveis. Muitos casos começam com uma dieta "inocente" que sai do controle. A restrição alimentar desencadeia alterações neurobiológicas que, em pessoas predispostas, podem evoluir para o transtorno completo.
Os Sinais - Porque Quanto Antes, Melhor
Anorexia geralmente começa de forma sutil, e quanto mais cedo for identificada e tratada, melhor o prognóstico. Fique atento a:
Mudanças no comportamento alimentar:
Restrição progressiva de alimentos, eliminação de grupos alimentares inteiros
Rituais alimentares (cortar comida em pedaços minúsculos, comer muito devagar, arranjar comida no prato)
Evitar refeições em família ou situações sociais com comida
Desculpas frequentes para não comer ("já comi", "estou sem fome", "meu estômago está ruim")
Interesse súbito e obsessivo por nutrição, calorias, dietas
Cozinhar para outros mas não comer
Mudanças físicas:
Perda de peso progressiva e significativa
Queixas constantes de estar com frio
Tontura, desmaios, fraqueza
Problemas de concentração e memória
Amenorreia (perda da menstruação) em mulheres
Lanugo (pelos finos e claros pelo corpo)
Pele seca, cabelo quebradiço, unhas fracas
Mãos e pés frios, arroxeados
Mudanças comportamentais e emocionais:
Exercício físico excessivo e compulsivo (mesmo doente, com frio, cansado)
Isolamento social progressivo
Irritabilidade aumentada, especialmente em torno de refeições
Ansiedade e depressão
Checagem corporal constante (pesar-se múltiplas vezes, medir partes do corpo, beliscar gordura)
Uso de roupas largas para esconder o corpo
Negação do problema quando confrontado
Mudanças cognitivas:
Pensamento rígido, "preto no branco"
Preocupação obsessiva com peso, forma corporal, comida
Dificuldade de concentração em outros assuntos
Distorção da imagem corporal evidente
As Consequências Médicas São Graves
Vamos ser diretos: anorexia pode matar. E pode causar danos permanentes mesmo quando não mata. Vamos falar das complicações por sistemas:
Cardiovascular - é a principal causa de morte:
Bradicardia (batimentos cardíacos muito lentos, às vezes abaixo de 40 bpm)
Hipotensão (pressão muito baixa)
Arritmias cardíacas (que podem ser fatais)
Redução do tamanho do coração
Prolapso de válvula mitral
Insuficiência cardíaca
Ósseo:
Osteoporose precoce e grave (ossos ficam frágeis como os de idosos)
Osteopenia
Risco aumentado de fraturas
Comprometimento do crescimento em adolescentes
Danos podem ser irreversíveis mesmo com tratamento
Endócrino:
Amenorreia (perda da menstruação)
Níveis baixos de hormônios sexuais
Disfunção tireoidiana
Níveis elevados de cortisol
Hipoglicemia
Infertilidade (que pode ser reversível ou não)
Gastrointestinal:
Gastroparesia (esvaziamento gástrico lento)
Constipação severa
Síndrome de realimentação (complicação potencialmente fatal quando a alimentação é reintroduzida muito rapidamente)
Pancreatite
Danos hepáticos
Hematológico:
Anemia
Leucopenia (baixa de glóbulos brancos - imunidade comprometida)
Trombocitopenia (baixa de plaquetas - risco de sangramento)
Neurológico:
Atrofia cerebral
Neuropatia periférica
Convulsões (por desequilíbrios eletrolíticos)
Comprometimento cognitivo
Renal:
Insuficiência renal
Cálculos renais
Desequilíbrios eletrolíticos graves (especialmente potássio, que pode causar morte súbita)
Dermatológico:
Pele seca, escamosa
Lanugo
Queda de cabelo
Unhas quebradiças
Carotenodermia (pele amarelada)
O Tratamento: Complexo Mas Possível
Aqui está a boa notícia: anorexia tem tratamento. A recuperação é possível. Mas não é simples, não é rápida, e requer abordagem multidisciplinar e comprometimento de longo prazo.
Avaliação médica é o primeiro passo. Precisa avaliar o estado nutricional, complicações médicas, risco de vida. Em casos graves, hospitalização pode ser necessária - não como punição, mas para estabilização médica e nutricional.
Reabilitação nutricional é fundamental. Não adianta fazer terapia se o cérebro está desnutrido - ele simplesmente não funciona direito. Um nutricionista especializado em transtornos alimentares trabalha para:
Restaurar peso saudável gradualmente
Normalizar padrões alimentares
Desafiar medos alimentares
Educar sobre nutrição adequada
Prevenir síndrome de realimentação
Psicoterapia é o coração do tratamento:
A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) adaptada para transtornos alimentares trabalha pensamentos distorcidos sobre peso, forma corporal, comida; comportamentos disfuncionais; desenvolvimento de habilidades de enfrentamento.
A Terapia Familiar (especialmente em adolescentes) é altamente eficaz. A abordagem Maudsley/FBT (Family-Based Treatment) coloca os pais como agentes ativos da recuperação, especialmente na reintrodução alimentar.
Outras abordagens como Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT), Terapia Psicodinâmica, Terapia Interpessoal também podem ser úteis dependendo do caso.
Medicação tem papel limitado mas pode ajudar:
Antidepressivos (ISRSs) para depressão e ansiedade comórbidas
Antipsicóticos atípicos (como olanzapina) em baixas doses podem ajudar com ansiedade relacionada a comida e ganho de peso
Não há medicação específica aprovada para anorexia em si
Tratamento de comorbidades é essencial. Depressão, ansiedade, TOC, trauma - tudo precisa ser abordado.
Níveis de cuidado variam conforme gravidade:
Ambulatorial (consultas regulares)
Intensivo ambulatorial (várias vezes por semana)
Hospital-dia
Internação parcial
Internação integral (casos graves com risco de vida)
A Recuperação: O Que Esperar
Vou ser honesto: recuperação de anorexia não é linear. Não é uma linha reta para cima. Há avanços e retrocessos, dias bons e dias difíceis.
Recuperação física geralmente vem primeiro - ganho de peso, normalização de sinais vitais, reversão de complicações médicas. Mas isso não significa recuperação completa.
Recuperação comportamental envolve normalizar padrões alimentares, eliminar comportamentos compensatórios, reduzir exercício excessivo, parar checagens corporais.
Recuperação psicológica é a mais demorada e profunda - mudança na relação com comida e corpo, desenvolvimento de identidade além do peso, trabalho em questões subjacentes, desenvolvimento de habilidades de regulação emocional.
Recuperação social inclui retomar relacionamentos, atividades, projetos de vida que foram deixados de lado.
Estudos mostram que:
Cerca de 50-70% das pessoas se recuperam completamente
20-30% têm melhora parcial mas sintomas residuais
10-20% desenvolvem curso crônico
Taxa de mortalidade é de aproximadamente 5-10% (a mais alta entre transtornos psiquiátricos)
Fatores que melhoram prognóstico: início precoce do tratamento, menor duração da doença antes do tratamento, suporte familiar forte, ausência de comportamentos purgativos, ausência de comorbidades graves.
Para Familiares: Como Ajudar
Se alguém que você ama está lutando contra anorexia, você provavelmente se sente impotente, assustado, frustrado. Aqui vão algumas orientações:
O que fazer:
Procure ajuda profissional especializada o quanto antes
Eduque-se sobre o transtorno
Seja paciente - recuperação leva tempo
Evite comentários sobre peso, aparência, comida
Não entre em batalhas sobre comida - deixe isso para os profissionais
Ofereça suporte emocional incondicional
Cuide da sua própria saúde mental (terapia para você também pode ajudar)
Mantenha rotinas familiares normais quando possível
O que NÃO fazer:
Culpar a pessoa ou você mesmo
Fazer comentários sobre o corpo dela ("você está tão magra!")
Forçar comida ou vigiar cada mordida (a menos que orientado pela equipe)
Fazer acordos ou barganhas sobre comida
Comparar com outras pessoas
Minimizar o problema ("é só comer")
Desistir - mesmo quando parece impossível
Uma Palavra Sobre Prevenção
Embora não possamos prevenir completamente a anorexia (dado seu forte componente genético), podemos reduzir riscos:
Promover relação saudável com comida desde cedo (comida não é recompensa nem punição)
Evitar comentários sobre peso e aparência
Modelar comportamentos saudáveis (não fazer dietas restritivas na frente de crianças)
Promover autoestima baseada em características além da aparência
Ensinar pensamento crítico sobre mídia e padrões de beleza
Estar atento a sinais precoces e buscar ajuda rapidamente
Criar ambiente familiar onde emoções podem ser expressas e validadas
Uma Última Palavra
Anorexia nervosa é uma doença séria, complexa, potencialmente fatal - mas tratável. Não é escolha, não é vaidade, não é fase. É um transtorno mental com raízes neurobiológicas profundas que sequestra a vida da pessoa.
Se você está lutando contra anorexia, saiba: você não é seu transtorno. Há uma pessoa inteira, valiosa, com sonhos e potencial além dos números na balança. A recuperação é possível, e você merece viver plenamente.
Se você conhece alguém com anorexia, saiba: seu apoio importa. Sua paciência, sua presença, sua disposição de aprender e ajudar fazem diferença real.
E para todos: vamos parar de glorificar a magreza extrema, de fazer comentários sobre corpos alheios, de perpetuar a ideia de que valor pessoal tem a ver com aparência. Cada palavra conta. Cada atitude importa.
A recuperação é possível. A vida além da anorexia existe. E vale a pena lutar por ela.
